Sexta-feira, 19 de Junho de 2009

Filho adoptivo da mãe Rússia

João Campos | C13

Logoplaste

Novomoskovsk - Rússia | Olomouc - Rep. Checa | Elst - Holanda

 

Desde que me lembro de olhar o mapa do mundo, a Rússia, além de o dominar, sempre me transmitiu um silêncio profundo e uma certa sensação de medo. Na minha cabeça, a imagem de uma Rússia formada através dos media, um monstro de guerras, crispações politicas, uma democracia pouco livre, a máfia, mendigos na rua, milionários a jogarem dinheiro fora, ou o

aos poucos sinto-me a ir para casa, porém, com mais bagagem para compreender as pessoas e o mundo
retrato dos filmes do James Bond com agentes maléficos do KGB, bandidos impiedosos, mulheres vorazes, guarda-costas durões, cientistas chanfrados…

 

A minha inquietação começou ainda em Portugal, à minha espera um cenário destes e um alfabeto muito diferente do que havia aprendido em cadernos de duas linhas. Fácil, foi só mesmo perspectivar o quão penosa iria ser a minha adaptação, tão penosa como o longo, demasiado longo e castigador inverno russo.

 

Ainda antes de partir, lembro-me de ter publicado no facebook, “Rússia, I am hot enough to melt your snow!”. Ao aterrar na imponente Moscovo, cedo me apercebi que, este «chegar, ver e vencer» romano, não era adequado a um país de cultura tão abastada, personalidade tão vincada e a uma história de perder a memória. Humildemente, arrefeci o temperamento, enfiei a carapuça e aprendi a caminhar nas manhas do solo gelado.

 

Esta foi a minha forma de sobreviver na Rússia, adaptando-me, aceitando as diferenças, tentando percebê-las, mas nunca afogando a minha personalidade. Afinal, o meu temperamento nunca baixou dos 0ºC, a carapuça era apenas um gorro para me aquecer e a caminhada tinha ginga de portuga. Também era assim que eles me aceitavam, na diferença e no respeito, sendo que a nossa relação foi muito além do mútuo respeito - houve empatia, amizade e afeição, havendo nisso muita culpa da curiosidade russa.

 

Em Novomoskovsk, onde eu morava, a 300kms de Moscovo, numa Rússia pobre e profunda, os portugueses eram o tema de conversa da aldeia, um estrangeiro era coisa rara naquelas bandas, eu sentia-me observado mas sem hostilidade, já que para eles eu era uma boa fonte de informação sobre o exterior, abordavam-me e aproveitavam para fazer perguntas, muitas perguntas de Portugal e, na conversa, entre gargalhadas e barreiras da língua, interessava-lhes também a minha opinião sobre a Rússia. A minha resposta era ponderada e ao encontro do que eles queriam ouvir, pois não há coisa pior, para este povo nacionalista, do que maltratar a própria pátria. O povo russo é muito emocional, de sentimentos extremados e destes eu preferia o amor ao ódio.

 

Sentia que a evolução da minha integração esbarrava na comunicação, o inglês era capricho das gentes endinheiradas de Moscovo e de um ou outro iluminado. Foi então que me empenhei em aprender a língua de Tolstoi. Estudava à noite em casa e, no autocarro, à ida para a fábrica, massacrava o paciente Alexander – o meu mestre russo improvisado que arranhava um inglês tosco. Ele não se importava com as aulas grátis, aliás, tinha aquele feitio russo sempre pronto a ajudar. À medida que o meu russo evoluía as coisas ficavam mais fáceis e as relações aprofundavam-se. Quando comecei a trocar um “Hi!” por um “Priviet!”, eles apreciaram a dedicação, e quando comecei a construir frases e até pequenas conversas, era como se me abrissem os braços da adopção. No ginásio, aqueles que, ao princípio, me pareciam bestas de coração de aço, quando comecei a soltar vocábulos em russo, desfaziam-se em simpatia, e essa é uma característica bem russa, por detrás de uma expressão rígida e fria está um carácter humano e caloroso.

 

Aos poucos, os meus fantasmas dissipavam-se e eram substituídos por experiências gratificantes. Só mesmo a pasmaceira própria de uma vila (que parece aldeia) e o clima se armavam em desmancha-prazeres e testavam a minha resistência. O antídoto contra a pasmaceira era os fins-de-semana, quase sempre, passados em Moscovo, autênticas lufadas de progresso europeu.

 

Agora estou na República Checa e daqui a uma semana vou para a Holanda. Aos poucos sinto-me a ir para casa, porém, com mais bagagem para compreender as pessoas e o mundo.

publicado por visaocontacto às 11:45
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